Série: Desmentindo Mitos sobre Dor e Cirurgia da Coluna – Episódio 6 — “Ficar em repouso é o melhor para dor nas costas?”
22 de outubro de 2025 | sem comentário | Categoria(s): Artigos
Poucas frases são tão repetidas — e tão mal compreendidas — quanto esta:
“Se está com dor nas costas, o melhor é ficar de repouso.”
Dita com convicção por avós, vizinhos, atendentes de farmácia e até alguns profissionais de saúde, essa orientação parece lógica: se algo dói, o corpo precisa descansar.
Mas a ciência moderna da dor, a ortopedia contemporânea e a neurocirurgia atual dizem algo diferente — e surpreendente:
Repouso prolongado pode piorar o quadro de dor lombar.
Em vez de ajudar, pode prolongar o sofrimento, criar novas disfunções e até transformar uma dor aguda em um problema crônico.
Neste episódio, vamos entender:
- De onde vem essa ideia tão difundida
- Por que ela está ultrapassada
- O que acontece com o corpo em repouso absoluto
- Quando o repouso é necessário — e quando ele é prejudicial
- E o mais importante: o que fazer, de fato, quando a coluna dói
O mito do repouso: uma ideia antiga com consequências atuais
Durante muito tempo, a medicina acreditava que qualquer dor musculoesquelética exigia imobilização.
Era o tempo dos colares cervicais por qualquer torcicolo, das cintas lombares em uso contínuo e do “repouso absoluto” como tratamento universal.
Essa crença surgiu num tempo em que sabíamos pouco sobre:
- A neuroplasticidade da dor
- A importância do movimento controlado
- Os mecanismos de descondicionamento muscular
- A influência do repouso sobre a saúde mental e emocional
Mas os estudos evoluíram, e hoje sabemos que:
Ficar em repouso prolongado, sem critério, pode causar mais danos do que benefícios.
O que acontece com o corpo quando se repousa demais?
1. Perda de força e tônus muscular
O sistema muscular precisa de estímulo constante.
Com apenas 48 horas de inatividade, já ocorre perda significativa de tônus.
A musculatura lombar, abdominal e paravertebral — tão importantes para a sustentação da coluna — começa a perder função.
2. Enrijecimento articular
As articulações precisam se mover para manter a lubrificação, o alinhamento e a flexibilidade.
O repouso prolongado favorece rigidez, piora postural e aumento da dor ao tentar se mover novamente.
3. Diminuição do limiar da dor
Estudos mostram que o repouso absoluto favorece a hipersensibilização central — ou seja, o cérebro passa a interpretar estímulos normais como dolorosos.
O sistema de dor se torna mais reativo, como um alarme disparando sem ameaça real.
4. Queda no humor e motivação
O repouso isolado, especialmente em pacientes que já convivem com dor, favorece a apatia, o desânimo e até quadros depressivos leves.
O ciclo dor-repouso-ansiedade se instala com facilidade.
5. Perda de autonomia e aumento do medo
O medo do movimento (cinesiofobia) é um dos principais fatores de cronificação da dor lombar.
O repouso excessivo reforça a ideia de que “se eu me mexer, vai piorar” — criando um aprisionamento funcional e emocional.
Mas então… o que fazer quando a dor começa?
É claro que dor aguda precisa ser respeitada.
Mas respeitar a dor não significa se entregar à imobilidade.
A conduta moderna sugere:
✅ Pausas e ajustes nas atividades, não suspensão completa
✅ Movimentos leves, assistidos, orientados, logo nos primeiros dias
✅ Alongamentos suaves, desde que toleráveis
✅ Evitar ficar deitado o tempo todo — alternar posições é mais eficaz
✅ Iniciar fisioterapia precocemente, quando indicado
✅ Identificar a causa da dor, com exame clínico e, se necessário, imagem
✅ Bloqueios ou infiltrações quando a dor impede qualquer progresso
Em outras palavras:
Movimentar-se com inteligência é o novo repouso.
Quando o repouso ainda é necessário?
Sim, existem situações em que repouso temporário ainda é indicado.
Mas são exceções, não regra.
Exemplos:
- Quadros inflamatórios agudos com dor incapacitante — repouso por 24 a 48h
- Pós-operatório imediato — com mobilização gradual já nas primeiras 24h
- Instabilidade vertebral severa, até definição cirúrgica
- Fraturas recentes, com indicação médica
Mesmo nesses casos, o repouso é prescrito com tempo definido e sob vigilância médica.
A meta é sempre retomar o movimento o mais breve possível.
Por que o movimento é tratamento?
O movimento ativa:
- A musculatura estabilizadora da coluna
- A produção de endorfinas e neuromoduladores
- A circulação sanguínea, que ajuda na redução de inflamação
- A percepção corporal e a confiança
- A reprogramação do sistema nervoso para sair do “modo dor crônica”
Em resumo: o movimento reeduca o corpo e o cérebro.
É parte do tratamento, não ameaça.
A importância da orientação correta
A chave está na individualização.
Nem todo paciente está pronto para correr ou fazer pilates na crise de dor.
Mas quase todos podem:
- Caminhar dentro de casa
- Sentar-se com apoio correto
- Fazer movimentos respiratórios e pélvicos
- Trabalhar a mobilidade passiva com auxílio
Na Clínica Vertebrata, nosso compromisso é com a avaliação criteriosa e o planejamento da retomada da função — seja por fisioterapia, reabilitação ativa, bloqueios ou, quando necessário, cirurgia.
Casos reais: o repouso que agravou, o movimento que curou
Já atendi pacientes que ficaram deitados por semanas, esperando a dor passar, e chegaram com quadro muito pior do que no início.
E também já vi pacientes que, orientados a se mexer com cautela e técnica, retomaram sua vida em poucos dias — com dignidade e alívio.
Um paciente me disse certa vez:
“Doutor, eu estava esperando melhorar para me mexer… mas foi quando eu me mexi que comecei a melhorar.”
Essa frase resume o novo paradigma do tratamento da dor.
Conclusão: repouso absoluto é exceção, não regra
Se você ouviu que deveria “ficar deitado até melhorar” — cuidado.
Esse conselho pode ter te levado ao ciclo da dor crônica, do medo do movimento e da dependência de medicamentos.
A nova medicina da dor preconiza o movimento precoce, o engajamento ativo no tratamento e o abandono de paradigmas ultrapassados.
Repousar pode ser necessário por horas ou dias — mas nunca por semanas ou meses, sem supervisão.
A dor deve ser acolhida, sim. Mas não alimentada.