Série: Desmentindo Mitos sobre Dor e Cirurgia da Coluna Episódio 8 – “Cirurgia de coluna sempre deixa sequelas” – mito, destino inevitável?

22 de outubro de 2025 | sem comentário | Categoria(s): Artigos

Quando uma pessoa recebe a indicação de cirurgia de coluna, é natural que surja o medo. Um dos receios mais repetidos é:
“Se eu operar, vou ficar com sequelas para o resto da vida.”
Esse sentimento vem de histórias ruins que circulam — relatos de procedimentos mal indicados, pós-operatórios difíceis, ou de casos antigos em que as técnicas ainda eram grosseiras.

Mas será que isso é uma regra?
Não, definitivamente não.


Entendendo o que significa “sequela”

Primeiro, vale separar termos. “Sequela” é um efeito residual que persiste após a cura de uma doença — pode ser uma limitação, perda de força, dor residual, alteração sensitiva ou cicatriz que incomoda.

Algumas intervenções médicas, em especial as grandes cirurgias de antigamente, de fato deixavam sequências mais marcantes.
Porém, nos dias de hoje, graças a avanços na técnica, no diagnóstico e no manejo pós-operatório, a maioria das cirurgias de coluna não deixa sequelas incapacitantes quando bem indicada e bem executada.


A grande palavra: indicação

A diferença entre um resultado ruim e um resultado ótimo muitas vezes começa antes da cirurgia — no diagnóstico e na indicação.

Uma cirurgia bem indicada é aquela em que:

• Existe uma correlação clara entre os sintomas do paciente (dor, déficit motor, alteração sensitiva, redução funcional) e as imagens (ressonância, tomografia);
• Foram esgotadas — ou o caso é claramente refratário/urgente — as medidas conservadoras quando estas eram adequadas (fisioterapia dirigida, medicação, bloqueios diagnósticos/terapêuticos);
• O objetivo da cirurgia é realista e explicado ao paciente (alívio da dor, recuperação de função, descompressão neural, estabilização de coluna, etc.).

Quando a cirurgia é feita sem essa coerência, as chances de decepção aumentam.
Portanto, não é a cirurgia que determina a sequela — é a indicação inadequada que frequentemente a precede.


Técnica importa — e muito

Hoje convivemos com um leque técnico que vai do tratamento aberto tradicional a técnicas minimamente invasivas e à endoscopia de coluna. Cada técnica tem indicações próprias.

• Cirurgias abertas clássicas (por exemplo artrodeses longas, largamente instrumentadas) continuam sendo necessárias em problemas complexos — instabilidade severa, deformidades, tumores ou fraturas. Em mãos experientes, trazem ganhos funcionais importantes, mas podem exigir recuperação mais longa.
• Técnicas minimamente invasivas (MIS) e endoscopia de coluna reduziram trauma cirúrgico, perda sanguínea, dor pós-op e tempo de internação. Para muitos tipos de hérnia discal e compresões foramis, essas técnicas permitem retorno mais rápido às atividades.

O ponto é: a técnica escolhida de forma apropriada ao problema reduz dramaticamente o risco de sequelas — menos agressão tecidual, menos cicatriz interna, menos impacto muscular e articular.


Riscos existem — mas são gerenciáveis

Toda cirurgia tem riscos: infecção, lesão neural, sangramento, trombose, falha de fusão, recidiva de hérnia.
Mas os riscos podem ser quantificados, explicados e mitigados.
O que os pacientes chamam de “sequela” muitas vezes é:

• uma dor residual temporária durante a cicatrização;
• perda transitória de força por neurite pós-compressiva;
• necessidade de reabilitação;
• ou, menos frequentemente, complicações que exigem re-operação.

A transparência do cirurgião sobre probabilidade de complicações, medidas preventivas (profilaxia antibiótica, técnica asséptica, anticoagulação quando indicada), e plano de reabilitação é o que transforma um risco em algo gerenciável e aceitável.


Expectativa realista — a chave para satisfação

Outro fator que define se algo será percebido como “sequela” é a expectativa do paciente.

Quando o objetivo da cirurgia é apresentado claramente — “isso melhora a dor ciática, reduzindo a compressão; pode não eliminar 100% de dores musculares crônicas associadas a degeneração” — o paciente avalia melhor o resultado.
Promessas milagrosas aumentam a sensação de fracasso.

Um exemplo prático: um paciente com dor ciática intensa por hérnia L5-S1 tem grande chance de recuperação funcional e alívio da dor irradiada após descompressão. No entanto, se o mesmo paciente esperava também desaparecer com dores cervicais crônicas que não eram relacionadas ao segmento operado, poderá julgar o resultado como “com sequelas” — e aí a culpa não é do ato cirúrgico, mas da comunicação inicial.


Reabilitação: parte integrante da cirurgia

A cirurgia é uma etapa do tratamento.
A recuperação plena depende de reabilitação adequada:

• fisioterapia dirigida
• fortalecimento
• correção de padrões posturais
• controle de fatores metabólicos (tabagismo, diabetes)
• acompanhamento multidisciplinar quando necessário

Quando o plano pós-op é negligenciado, o risco de limitação funcionais aumenta — e novamente, o que parecia sequela poderia ter sido evitado com reabilitação correta.


Casos em que sequela é mais provável — e por quê

Existem situações em que a chance de alguma sequela é maior:

• Lesões nervosas prévias muito prolongadas (raiz nervosa comprimida por longo tempo): quanto mais demora a descompressão, menor a chance de recuperação completa da função.
• Casos complexos e reoperados: retrabalhos cirúrgicos têm mais cicatriz interna e técnica mais difícil — as chances de complicações são maiores.
• Doenças sistêmicas (osteoporose severa, tabagismo ativo, diabetes descompensado): dificultam consolidação e recuperação.
• Processos degenerativos difusos: tratar um segmento pode aliviar sintomas radiculares, mas a coluna inteira ainda tem alterações que exigem manejo contínuo.

Mas mesmo nestes cenários, a cirurgia frequentemente melhora qualidade de vida; a possibilidade de alguma limitação residual não torna a cirurgia inútil.


O que diz a literatura (numa visão prática)

Estudos comparativos mostram que:

• Para hérnias discais sintomáticas com correlação clínica e imagem, a cirurgia (inclusive endoscópica) tende a proporcionar alívio mais rápido da dor radicular e maior chance de retorno ao trabalho no curto prazo.
• Para estenose de canal, procedimentos de descompressão bem indicados melhoram significativamente a intensidade da dor e a capacidade de andar.
• Complicações ocorridas não são negligenciáveis, mas sua incidência, quando as indicações e técnicas são apropriadas, é relativamente baixa — e a maioria das complicações é reversível ou tratável.

(Observação: aqui não entraremos em dados numéricos pormenorizados para não transformar o texto em meta-análise — mas essas referências existem e podemos juntá-las caso queiras.)


Como minimizar o risco de “sequela” — recomendações práticas

  1. Procure um diagnóstico claro: correlação clínica + imagem adequada.

  2. Busque segunda opinião quando a indicação não estiver bem explicada ou for duvidosa.

  3. Escolha o procedimento certo para o problema certo — técnica minimamente invasiva quando indicada.

  4. Converse sobre expectativas: pergunte ao cirurgião qual o objetivo realista do procedimento.

  5. Cuide da saúde geral (parar de fumar, controlar glicemia, reduzir peso quando necessário) — isso impacta diretamente na recuperação.

  6. Siga o plano de reabilitação: a fisioterapia recomendada não é opcional, é parte do tratamento.

  7. Tenha acompanhamento: clínica, fisioterapeuta e, quando preciso, equipe multidisciplinar.


Conclusão — um veredito honesto

Dizer que “cirurgia de coluna sempre deixa sequelas” é um exagero que revela medo e desinformação.
A realidade é mais complexa:

Cirurgias de coluna, quando bem indicadas e bem executadas, costumam:

• devolver função
• diminuir dor
• melhorar a qualidade de vida
• e frequentemente sem sequelas incapacitantes

Riscos existem, são reais, mas são conhecidos e gerenciáveis.

A melhor forma de transformar o temor em decisão segura é informação de qualidade, diálogo franco com o cirurgião e um plano terapêutico que inclua reabilitação.

Assim, a cirurgia deixa de ser uma sentença e torna-se uma ferramenta poderosa para recuperar vida.

Médico neurocirurgião especialista em tratamentos da coluna vertebral, é membro titular da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, Academia Brasileira de Neurocirurgia e Sociedade Brasileira de Coluna, bem como da North American Spine Society e Spinal Artroplasty Society.


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